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O escritor como arquiteto

"A arquitetura renascentista sugere bons símiles para pensarmos nossos textos como artefatos para uma reflexão apta e elegante."

“Ler é dividir”, anotou Hugo de São Vitor em seu Didascálicon (1127). Essa operação exige atenção, mas, graças a ela, o leitor descobre acessos a uma obra complexa. Certos textos, contudo, resistem a tal abordagem em virtude das insuficiências do escritor. Sua obscuridade resulta da distribuição confusa dos temas, da articulação precária das passagens, ou da ausência de um desenho argumentativo definido.

Vista interna do Teatro Olimpico da Itália
Vista interna do Teatro Olimpico da Itália (Reprodução)

A arquitetura renascentista sugere bons símiles para pensarmos nossos textos como artefatos para uma reflexão apta e elegante. Concebidas a partir do estudo do mundo antigo, certas construções convidam-nos a nos debruçar sobre seus princípios discursivos. Federico Zeri apresenta a incontornável figura de Brunelleschi (1377-1446) como formulador de um “espaço racionalizado lucidamente articulado nos elementos que o definem”. A concatenação de seus diversos componentes os mostra ligados entre si com tal coerência que, eliminado um só, todo o conjunto é transtornado. Cuidadosamente dosada, a iluminação participa da clareza com a qual o observador percebe, de um só golpe, “a regra mental que regeu o nascimento da construção”.

Conhecedor dos antigos e de Brunelleschi, Leon Battista Alberti (1404-1472) abordou, em seu De re aedificatoria, a arte da construção. Ela consistiria “no projeto e na estrutura”. A função do projeto seria “indicar para o edifício e todas suas partes um lugar apropriado, uma proporção exata, uma disposição conveniente e uma ordem harmoniosa”, de tal modo que sua forma esteja inteiramente implícita na concepção (I,1). Tal ideal, inspirado na noção ciceroniana de concinnitas, evoca a harmonia entre os membros de um edifício, “na unidade da qual fazem parte, fundada em uma lei precisa, de modo que nada pode ser acrescentado, removido ou alterado” (VI, 2). Tal lei compreenderia o número, a proporção e a disposição das partes (IX, 5).

Para Alberti, a ornamentação também deve ser cuidadosamente pensada, não sobrecarregando a obra com elementos muito evidentes, “não os amontoando, não os concentrando num só lugar, mas distribuindo-os tão adequadamente (…) que, quem os alterar, sinta que foi perturbada toda a agradável sensação de concinnitas” (IX, 9). Na escrita, a ornamentação também deve ser calculada; e, com figuras, equilibram-se a clareza e a obscuridade do texto, solicitando certo esforço do leitor. Enfim, a divisão das partes pelo autor (ou arquiteto) deve facilitar a identificação dos componentes, calibrando-os em suas dimensões e seus elementos decorativos, garantindo rigor, compreensibilidade, harmonia e variedade.

Essas analogias não nascem do mero fascínio com a pureza formal de projetos admiravelmente concebidos. Penso também nos ruídos entre plano e execução, na lida com a rudeza das circunstâncias. A construção, de textos e edifícios, é um processo tenso e custoso. “Escrever é difícil”, diz Robert Caro em Turn every page, documentário sobre sua colaboração com o editor Robert Gottlieb, que dá a impressão de um verdadeiro canteiro de obras. Como orientadores e avaliadores, revisamos, cortamos, recomendamos ajustes, de estilo e de estrutura. Refazemos planos argumentativos, corrigimos articulações, explicitamos transições, ou as deixamos mais amenas. O objetivo é tornar a leitura natural e proveitosa.

Ao final do tratado, Alberti aborda a correção dos defeitos das obras, citando certos vícios de espírito: “a seleção, a compartimentação, a distribuição, a delimitação desordenadas, dispersas e confusas” (X,1). Ele idealizou edifícios realizados depois por outros e não pôde impedir alterações comprometedoras. Alguns arquitetos, por outro lado, reconstruíram obras mal concebidas, tornando-as objetos duradouros. É o que também almeja um editor.

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