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A voz que fala e a voz que canta: a cultura e seus enclaves

Cacá Machado "Enquanto a voz da fala, por sua necessidade pragmática, é efêmera e volátil, a voz do canto é uma experiência presente do corpo vivo vibrante."

“E aquela extraordinária cantante de que aprendi a gostar deixava de existir, e aparecia uma falante, falando menos do que devia, mais baixo do que devia e mais nervosa do que devia. Eu, muitas vezes, cheguei a pensar: será que a companheira Margareth Menezes vai dar conta do recado? Afinal de contas, esse ministro [sic] já tinha passado pela mão de outro extraordinário baiano que vocês conhecem bem, que é o Gilberto Gil.”

Este trecho é um recorte do discurso do presidente Lula na abertura da IV Conferência Nacional de Cultura (IV CNC), realizada entre 4 e 8 de março deste ano em Brasília. Lula, com sua notória habilidade discursiva, ao mesmo tempo em que aponta as dificuldades que a ministra Margareth Menezes tem em sua fala e em sua postura como política, foi enfático, ao longo do discurso, no seu apoio à ministra e, sobretudo, à sustentação estratégica de sua companheira Janja para a área da cultura. Negaceios de um mestre da fala. Voltarei ao tema da Conferência, mas discutirei, antes, o que mais chamou a atenção da minha escuta como espectador convidado: o jogo das vozes.

Acredito que, desde sempre, mas principalmente depois de Roland Barthes, com seu clássico ensaio “O grão da voz”, refletir sobre a voz em sua língua materna é condição necessária para que possamos ouvir a voz que fala pela voz. Porque as relações entre a voz e a língua acontecem num campo amoroso – isto não quer dizer, é claro, livre de tensões, conflitos e violência. Sabemos que não existe voz neutra. Uma voz é sempre uma voz diferente das outras vozes. E é justamente este lugar da diferença, reconhecido por Barthes como propriedade única da voz, que me interessa.

Sabemos que a política, como já observou o psicanalista Tales Ab’saber, no ensaio “A voz de Lula” para a revista Serrote#10, não é movida pelos valores estéticos da voz. No entanto, surge uma outra ordem de diferença quando a voz que fala transforma-se na voz que canta. A fala é dominada pela descontinuidade aperiódica da linguagem verbal – muitas vezes, a emissão de uma série de palavras sem desejo, omissões foscas e abafadas de um corpo retraído, voz recortada pela pressão do princípio de realidade.

Como observou o crítico José Miguel Wisnik, para além de Barthes, “(…) a voz da fala nos situa no mundo, recorta-o e nos permite separar sujeito e objeto, à custa de um sistema de diferenças que é a língua. Entretanto, o cantar faz nascer uma outra voz dentro da voz. Essa, com que cantamos, potencializa a experiência da presença da linguagem, não da diferença”.

Isto, porque da fala ao canto há um processo geral de corporificação. Enquanto a voz da fala, por sua necessidade pragmática, é efêmera e volátil, a voz do canto é uma experiência presente do corpo vivo vibrante. A fala é um recorte descontínuo de sucessivas articulações de conteúdos abstratos que deve ser apreendido instantaneamente em suas diferenças. O canto é um continuum de durações, de intensidades, de pulsações em permanente jogo, que faz do fluxo ritualizado pela recorrência uma experiência presente. Neste sentido, é possível dizer que, perante a voz da língua, a voz que canta é libertação.

Contudo, com Lula, é diferente. De certo modo, ele contradiz essa teoria geral da voz. Lula é pura presença, e, talvez por esta razão, sua voz falante esteja sempre carregada de tanta potência virtualmente libertadora. Isto vale também para grandes oradores da política, como Barack Obama, Getúlio Vargas, Fidel Castro e Martin Luther King, só para ficar em alguns. Lembram-se, aliás, do discurso de Lula em São Bernardo na ocasião de sua prisão em 2018? – “Não sou mais um ser humano, sou uma ideia”.

Voz rouca, voz de trovão que, como apontou precisamente Ab’Saber, rompeu o pacto conservador do homem cordial brasileiro. Se Fernando Henrique Cardoso tinha aquela voz direta e ligeiramente superior aos seus interlocutores, ancorada na suposta sabedoria acadêmica paulistana, a voz de Lula seduz pelos torneios e negaceios. Estabiliza as durações, cria fluxos e dinâmicas. Sua voz não é pragmática. É menos falante e, em certo sentido, mais cantante.

Cacá Machado "Enquanto a voz da fala, por sua necessidade pragmática, é efêmera e volátil, a voz do canto é uma experiência presente do corpo vivo vibrante."
O presidente Lula (ao centro terno cinza) com grupo folclórico durante a abertura do 4ª Conferência Nacional de Cultura,
no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília

Talvez por isso ele exija de sua equipe a performance de artistas. Foi assim com seu vice Geraldo Alckmin (mais de uma vez, em campanha, Lula disse que Geraldo era tímido demais e falava pouco), e, agora, com a Ministra Margareth. Esta, sim, uma cantante que está aprendendo, na pressão da política, a tornar-se artista da voz falante. Gilberto Gil, “o extraordinário baiano” citado no trecho do discurso de Lula, foi, desde o início, uma voz falante-cantante, um artista da política e das artes. No seu discurso de abertura da I Conferência Nacional de Cultura em 2005, o ministro Gil vocalizou pela primeira vez a cultura como assunto prioritário em nosso país.

“Vamos, então, dizer em coro, e bem alto, para os que não se encontram aqui, para os que ainda não se deram conta do papel estratégico da cultura, para os que desprezam o potencial do Brasil, enfim, para todos ouvirem:

● Cultura é política social
● Cultura é política econômica
● Cultura é política urbana
● Cultura é direito
● Cultura é cidadania
● Cultura é necessidade
● Cultura é prazer
● Cultura é o que nos situa no tempo e no espaço
● Cultura é bem-estar e prazer
● Cultura é desenvolvimento

Eis o decálogo básico da cultura brasileira, o decálogo desta Conferência, do Ministério da Cultura, o decálogo que devemos reproduzir diariamente como um mantra, para que as portas se abram, e o sonho se realize.”

Ali, em 2005, Gil lançou as bases do que está sendo implementado e discutido atualmente na política cultural brasileira: o Plano Nacional de Cultura (aprovado em 2010 pela Lei Nº 12.343) e o Sistema Nacional de Cultura (cujo marco regulatório foi aprovado pelo Senado somente em 2024).

De volta ao assunto da IV Conferência Nacional de Cultura, “Democracia e Direito à Cultura” foi o leitmotiv do encontro. Tudo ocorreu num contexto ainda tenso, marcado pela retomada após pelo menos duas grandes experiências de descontinuidades: uma de ordem interna à sucessão dos governos petistas – entre o governo Lula II e Dilma I, as prioridades da gestão Gil/Juca (2003/2010) tornaram-se pautas secundárias nas gestões das ministras Ana de Hollanda (2010/2011) e Marta Suplicy (2012/2014) – e outra que diz respeito à uma dinâmica mais ampla da política nacional, isto é, o impeachment de Dilma (2016) e a consequente interrupção da gestão do Ministro Juca Ferreira (2015/2016), que havia retomado as pautas interrompidas pelas ministras anteriores, somada à total desconstrução institucional do campo cultural pelo governo
Bolsonaro (2019/2022).

Neste cenário de terra arrasada, durante a pandemia de covid-19, foram aprovadas as Leis emergenciais Aldir Blanc e Paulo Gustavo I e II, mecanismo de fomento baseado em emendas parlamentares, distribuído através de um precário, para não dizer inexistente, Sistema Nacional de Cultura – pois, se ele foi aprovado como marco regulatório agora, em 2024, no Senado, de que sistema, afinal, estamos falando? Mas se, por um lado, tais leis emergenciais foram um relativo alento para o cenário de devastação recente do campo cultural, por outro, no meu entendimento, isto tirou o foco das construções das políticas públicas.

A questão que se coloca é de ordem conceitual. O nó está justamente naquilo que foi o maior investimento institucional do Ministério da Cultura nas gestões Gil/Juca: as Leis do Plano Nacional de Cultura (PNC, 2010), do Sistema Nacional de Informação e Indicadores Culturais (SNIIC, 2012), do Sistema Nacional de Cultura (SNC, 2024) e da Política Nacional de Cultura Viva (PNCV, 2014). A engrenagem funcionou razoavelmente bem no seu início. Ajustes seriam necessários, como sempre. Se estivesse implementado, o Sistema Nacional de Cultura seria o lugar de execução ágil, transparente e eficaz de Leis emergenciais como a Aldir Blanc e a Paulo Gustavo, pois identificaria na ponta os agentes culturais locais e suas necessidades. Mas aí é que mora a perversidade disso tudo. Como o Sistema Nacional de Cultura ainda está em processo de implementação, o repasse das Leis Emergenciais tem dificuldades de escoamento, sem falar nos tradicionais “desvios” das práticas políticas regionais, sobretudo nos municípios. Consolida-se, assim, a narrativa de que “eu aprovei a Lei, a ineficiência é dos outros”. Esta é a lógica que alimentou, por exemplo, as ações do governo Bolsonaro em áreas estratégicas como o meio ambiente, a educação e a saúde.

Em suma, o que quero dizer, explicitamente, é que o foco majoritário em recursos orçamentários pode nublar a construção das políticas públicas. A injeção de 3,8 bilhões na área cultura, via Lei Paulo Gustavo, por exemplo, através de repasses estaduais e municipais (em 2007, vale lembrar, o orçamento do MinC mal chegou a 1 bilhão), só será sentida de modo real se houver um mecanismo geral de funcionamento entre fundos setoriais (como o existente na área do audiovisual através da Ancine/Condecine), programas sustentáveis e multiplicadores (como o Cultura Viva) e um Sistema Nacional de Cultura análogo ao Sistema Único de Saúde/SUS.

Nos três dias em que estive como convidado na IV Conferência Nacional de Cultura, vi a festa e a alegria vital da volta dos agentes culturais que tiveram seus direitos e o ambiente democrático assegurados para a fruição plena do debate cultural. Isto não é pouco, sobretudo perante nossa história recente. Mas também vi e ouvi, em diversas situações, a pouca clareza dos condutores do processo em relação àquilo que deveria ser a prioridade para a construção de políticas públicas. Albino Rubin, também escrevendo sobre a IV Conferência Nacional de Cultura, foi preciso na afirmação: “A cultura não é automaticamente emancipatória, como se pode imaginar de modo
apressado ou como, muitas vezes, se autoiludem os próprios fazedores de cultura”.

Por fim, a cultura sempre foi um campo de disputa. Gostemos ou não, um campo conflituoso entre vozes falantes e cantantes. O aprofundamento da experiência democrática na cultura não pode ser garantido apenas pela pluralidade e pela diversidade de vozes, mas sim através de programas e projetos estruturantes que dialoguem com os desejos imediatos e transcendentes de todo o campo cultural. Este é o grande desafio.

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