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Livro promove o diálogo entre as ideias do pensador alemão e os dias de hoje

Capa do livro: Walter Benjamin e a guerra de imagens
Capa do livro: Walter Benjamin e a guerra de imagens

A ascensão da extrema direita nos últimos anos levou o ensaísta e crítico literário Marcio Seligmann-Silva, professor titular do Instituto de Estudos Literários (IEL) da Unicamp, de volta a Walter Benjamin. O docente, que iniciou sua pesquisa sobre a obra do autor alemão de origem judaica na década de 1980, resgata conceitos benjaminianos para uma leitura da contemporaneidade, promovendo o diálogo entre o pensador e trabalhos de autores e artistas de ontem e de hoje no livro Walter Benjamin e a guerra de imagens, recém-lançado pela editora Perspectiva.

O movimento que levou à publicação da obra, conta Seligmann-Silva, se deu durante a pandemia, período em que se uniu a Adalberto Müller, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), para reler as teses deixadas por Benjamin, morto em 1940. “Estávamos em meio a um governo fascista, entre 2019 e 2022, e era como se a pessoa que eu estudava como autor de um tempo nazifascista estivesse dentro da minha sala, conversando comigo. Houve uma espécie de esmagamento temporal com essa ascensão da extrema direita”, lembra o professor. “Temos aqui um autor tão poderoso para nos dar insights sobre como resistir e responder aos ataques e violências da extrema direita que somos obrigados a ler a mensagem benjaminiana e a responder à sua demanda”, completa.

Seligmann-Silva revela que a escolha pelo recorte contemporâneo foi inspirada em um conceito criado pelo próprio teórico europeu, para quem o saber, a história e o pensamento devem ser estruturados a partir do tempo-agora. Trata-se, afirma, de uma abordagem inédita na bibliografia dedicada ao filósofo, a quem normalmente são reservados estudos e leituras de caráter filológico, mais preocupados com o rigor na escrita e com a busca pela origem de seus conceitos e de suas influências. “Essa perspectiva filológica é necessária para uma aproximação com o autor. O problema é que, depois de dissecá-lo, não há um trabalho de remontá-lo e, em geral, ele fica ‘morto’. Para mim, interessava Benjamin vivo, do nosso lado, dialogando e trazendo os insights que ele tinha e que eram realmente surpreendentes.”

Nesse que é seu quarto livro sobre um dos mais estudados colaboradores da Escola de Frankfurt (sem contar traduções), Seligmann-Silva evidencia a atualidade de Benjamin tanto para explicar a história de exploração, dominação e aniquilamento capitalistas como para contribuir com a criação de uma sociedade que faça frente à e que transforme a realidade. Para tanto, o professor recupera sua análise sobre o jogo de imagens na política e a eficácia do espaço imagético construído por regimes nazifascistas nos anos 1930 – com discursos moralizantes em defesa, supostamente, da ordem, do nacionalismo e do fim da corrupção – para traçar um paralelo com o avanço, nos últimos anos, da extrema direita (com, por exemplo, a vitória de Donald Trump em 2016, nos Estados Unidos, e a de Jair Bolsonaro em 2018, no Brasil). Embora o ex-presidente brasileiro não tenha conseguido se reeleger em 2022 (nem tampouco o republicano nos Estados Unidos), Seligmann-Silva lembra que a manipulação excessiva de imagens para forjar uma figura saudosa da ditadura, que simboliza o machismo, a homofobia e o racismo e que defende o armamento da população, mobilizou uma base sólida de simpatizantes.

A resposta sobre como fazer frente ao extremismo e à ascensão da violência estaria também, argumenta, em Benjamin: investir na produção e na ampla difusão de contraimagens (como testemunhos e memórias). “Existe muito material didático por aí que pode ser usado na produção de imagens nessa guerra, como uma contranarrativa capaz de impedir que candidatos com narrativas absurdas consigam emplacar suas pautas e sejam eleitos”, aponta o docente, que cita ainda a importância das pautas identitárias na resistência ao fascismo. “Essas pautas constroem imagens potentes de ancestralidade, de uma identificação a partir de uma noção democrática e dialógica do estar no mundo, e não de uma noção de dominação, de apagamento, de opressão.”

O ensaísta e crítico literário Marcio Seligmann-Silva, autor de Walter Benjamin e a guerra de imagens: “A decolonialidade não é uma moda. Ela tem a ver com sobrevivência”
O ensaísta e crítico literário Marcio Seligmann-Silva, autor de Walter Benjamin e a guerra de imagens: “A decolonialidade não é uma moda. Ela tem a ver com sobrevivência”

Decolonialidade

Seligmann-Silva promove, nesse trabalho, o encontro entre a teoria da técnica benjaminiana, extratos de Aimé Césaire – pioneiro da crítica ao colonialismo – e textos recentes de Ailton Krenak e Daniel Kopenawa para abordar a necessidade de se pensar um outro modelo de sociedade, que não o de uma sociedade calcada na dominação e na destruição perpetradas desde o século 16. “Essa filosofia, muito pouco utilizada por ambientalistas e ecologistas, fala da existência de outra técnica, além daquela destruidora e associada à Modernidade, à guerra e à morte. Ela seria criada a partir do diálogo, da continuidade entre o humano e o não humano, e estaria associada ao conceito de Spielraum, que é difícil de ser traduzido, mas que pode ser entendido como um espaço de jogo ou um campo de ação lúdico.”

Uma ideia, observa, mais próxima do modelo de vida adotado pelos indígenas no Brasil. “A decolonialidade não é uma moda. Ela tem a ver com sobrevivência”, sinaliza o professor do IEL, apontando o Brasil como a personificação, na América Latina, da continuidade da Modernidade. “A ideia de humanidade vem dos europeus e não existe entre os indígenas. A cultura ocidental busca homogeneizar tudo. O que é diferente é ‘outrificado’, estigmatizado, considerado menor, um animal, e leva bomba. Direitos humanos só para quem faz parte daquela humanidade”, resume, em uma análise que se refere também ao que ocorre atualmente na Faixa de Gaza.

Dessa forma, Seligmann-Silva retorna ao tema abordado em outro livro dele gestado durante a pandemia, Virada Testemunhal e Decolonial do Saber Histórico (lançado no ano passado pela Editora da Unicamp). Naquela obra, o docente, graduado em história, retomou fatos como o assassinato do afro-americano George Floyd por um policial norte-americano e a destruição de estátuas e símbolos da colonização para analisar o momento de ascensão de movimentos de minorias que reivindicam a reconstrução das narrativas oficiais. “As propostas benjaminianas [exploradas no novo livro] vão totalmente ao encontro dessa ideia decolonial, porque ele falava da necessidade de se pensar a longo prazo.”

Anarquivamento

Em uma sociedade digital, na qual qualquer deslize é registrado pelas lentes de qual- quer celular quase que instantaneamente, viralizando em poucos minutos na forma de um meme editado para ridicularizar ou exaltar um lado, a mensagem de Benjamin for- nece matéria-prima não somente para reflexão, mas para a ação, demonstra SeligmannSilva no seu livro mais recente. “Seu pensamento tem uma relação muito forte com a práxis e, nesse sentido, é muito marxista. Serve para nos dar um instrumental podero- so voltado a repensar toda a história da Modernidade.”

Na opinião do docente, a defesa da legendagem para conferir sentido às imagens e a teoria do colecionismo – este último, visto por Benjamin como “uma luta contra a dispersão” –, dois conceitos do autor alemão, dialogam com a atuação artística de caráter político na contemporaneidade, mais focada na colagem, na montagem e na edição de extratos imagéticos “oficiais”. Seligmann-Silva cita, pensando nisso, ar- tistas visuais como Arthur Bispo do Rosário, que expôs sua tripla exclusão: negro, pobre e “louco”, e Rosângela Rennó, que trabalha em cima de extratos abandonados pela sociedade (como fotos de trabalhadores mortos durante a construção de Brasília) para fazer um memorial do “esquecimento”. Apenas para ficar entre os brasileiros.

Assim como preconizado por Benjamin, com sua crítica ao fascismo derivado da Modernidade e resultante do capitalismo de mercadorias, o trabalho desses artistas transforma fragmentos do “real” para revelar as violências a que são submetidas as mino- rias, trazendo à tona o que estava abafado e promo- vendo o que Seligmann-Silva denomina de “anar- quivamento”. Ou o ato de desorganizar registros da narrativa oficial, colonial e fascista para a criação de novas narrativas, reveladoras, decoloniais.


Livro: Walter Benjamin e a guerra de imagens 

Autor: Marcio Seligmann-Silva

Editora: Perspectiva

Páginas: 188

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