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Professor de biologia analisa efeitos do zoochauvinismo e da cegueira botânica nos livros didáticos

Gabriel Piassa, professor de biologia e autor da tese: apresentando as plantas sob outra perspectiva
Gabriel Piassa, professor de biologia e autor da tese: apresentando as plantas sob outra perspectiva

Que imagem lhe vem à memória quando você pensa nos livros didáticos de biologia? A probabilidade de que você tenha lembrado de um animal em um cenário no qual a vegetação aparece em segundo plano – em um ambiente aquático ou terrestre – é muito grande. “Quando pegamos livros didáticos dessa área, muitas imagens apresentam um animal na frente e, no fundo, uma planta. Daí o professor fala do animal e não fala da planta, que, nesse contexto, não é valorizada”, diz Gabriel Piassa, professor de biologia e autor da tese “Cegueira botânica e zoochauvinismo no ensino de Biologia: um estudo da literatura científica e de livros didáticos”, defendida no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

A “cegueira botânica” consiste em deixar de perceber as plantas em seu cenário natural. “Ou seja, não as enxergar dentro do ambiente e negligenciar a botânica ao não reconhecer sua real importância para a biosfera”, define Piassa. Já o outro termo constante do título da tese, o “zoochauvinismo”, diz respeito à tendência generalizada de considerar as plantas seres inferiores quando comparadas com os animais. Esses são fenômenos diferentes e de abrangência mundial, definidos conceitualmente entre o final do século 20 e início do 21. “Um é o fato de você negligenciar. O outro é o fato de você priorizar”, sintetiza Piassa.

O termo cegueira botânica caiu em desuso por conta de seu viés capacitista, diz o pesquisador, que traz em sua tese a proposta de adotar o termo “negligência botânica”. No caso do zoochauvinismo, o biólogo propõe definir o fenômeno assim: uma atribuição de valor menor às plantas quando comparadas aos animais. A discussão sobre esses termos é uma das contribuições teóricas da tese. A pesquisa também incentiva uma visão na qual as plantas sejam apresentadas sob outra perspectiva e que haja equilíbrio na percepção dos elementos de estudo da biologia. Piassa propõe uma abordagem intra e interdisciplinar no ensino, de maneira integrada e atrelada ao cotidiano do estudante.

Para além das fronteiras da sala de aula e dos livros didáticos, a própria mídia é citada como exemplo da negligência em relação à vida vegetal e da priorização da vida animal. “Quantas séries existem em que o protagonista é o mundo vegetal e quantas priorizam o mundo animal?”, questiona. Segundo o pesquisador, há várias explicações sobre a origem dessa negligência botânica. Uma delas é o processamento cognitivo, visto que o cérebro processa primeiro os elementos ameaçadores, aqueles que se mexem. Existe, portanto, uma explicação neurofisiológica para esse fato.

Um dos pontos da pesquisa é enfatizar a valorização da vida vegetal. “Acredito que esse caráter do ensino tem impacto na questão dos problemas ambientais, porque a vegetação seria mais preservada se as pessoas a valorizassem mais”, avalia Piassa, que estudou os fenômenos em diferentes contextos e países.

De acordo com o orientador da tese, professor André Simões, do IB, há uma dissociação generalizada das pessoas, no dia a dia, em relação ao meio ambiente e a sua inserção dentro dele. “Falta essa percepção”, acredita Simões, que atribui a nossa maior empatia com os animais também à nossa semelhança com esses, já que também somos animais.

O orientador da pesquisa, professor André Simões: empatia com os animais é maior
O orientador da pesquisa, professor André Simões: empatia com os animais é maior

Conteúdo didático

Coorientado pelo professor Jorge Megid, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, Piassa lembra que no início da pesquisa eles acreditavam que a cegueira botânica e o zoochauvinismo estariam inseridos somente nos capítulos dos livros didáticos de botânica e zoologia, respectivamente. Contudo, perceberam que os maiores indícios da existência dos dois fenômenos constavam dos capítulos destinados à teoria da evolução. “Os exemplos que aparecem são associados a animais, como a evolução do pescoço da girafa. Há poucos exemplos de plantas”, destaca o pesquisador.

Segundo o docente da FE, as formas de ensinar biologia, física, química, geologia e astronomia continuam parecidas. “A prática dos professores é predominantemente tradicional, baseada em exposição.” A proposta de integração no ensino de ciências já existe na atual base nacional comum curricular, observa o professor, mas os livros didáticos continuam separando de forma estanque os campos de saber e os professores continuam ministrando as aulas da forma tradicional. “Não é fácil mudar os livros didáticos”, diz Megid.

Simões acredita que uma das maiores barreiras para que haja integração está na própria formação dos professores. “Temos que nos reinventar para fazer essa mudança, o que é muito difícil. Além disso, há uma questão burocrático-administrativa, que dificulta esse processo. Trata-se de um desafio”, diz.

Megid acredita que investir na formação do professor é o caminho para a mudança. “Não devemos fazer uma ‘educação bancária’ [termo de Paulo Freire para designar o processo de transmissão conhecimento despojado de reflexão]. A ideia é trabalhar na escola toda essa aprendizagem do conhecimento científico acumulado de uma maneira integrada e acoplada ao cotidiano dos estudantes para que eles façam a reflexão”, acrescenta.

O professor Jorge Megid, coorientador do estudo: “Não é fácil mudar os livros didáticos”
O professor Jorge Megid, coorientador do estudo: “Não é fácil mudar os livros didáticos”

Integrado e multidimensional

Em sua tese, Piassa critica a abordagem individualizada de cada disciplina, “passando a impressão de que aquele conteúdo é mais importante do que os outros”. Por isso, o estudioso defende a inter-relação das disciplinas, atribuindo a todas a mesma importância. Professor há dez anos, de escolas públicas e privadas, o biólogo fala sobre como os estudantes do ensino médio consideram a disciplina de botânica desestimulante, desconexa e centrada na memorização de termos e nomenclatura. Trabalhar o conteúdo a partir de temas e de forma interdisciplinar é uma das maneiras para estabelecer pontes com outras áreas do conhecimento, diz.

“O papel da escola é mostrar que tudo isso é interdependente”, reforça Megid. Quando o professor de biologia segmenta as áreas – como zoologia, botânica, evolução, genética, ecologia e corpo humano –, reforça o modo como as pessoas veem o ambiente em que vivem. “A ideia é que as pessoas enxerguem o ambiente de forma multidimensional – pela dimensão humana, política, histórica, artística, entre outras.”

De acordo com Piassa, a discussão proposta não gira em torno de ampliar o espaço da botânica no ensino da biologia e das ciências em geral. O pesquisador defende uma abordagem na qual a escola desfaça a visão segmentada e fragmentada, substituindo-a por um enfoque integrado. Não basta reconhecer que há múltiplas dimensões, é preciso reconhecer que existe uma interdependência, afirma.

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