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Arte Rafaela Repasch

Militares precisam passar por ‘trabalho civilizatório’, avalia socióloga

Para professora que presidiu a Comissão da Verdade da Unicamp, “é preciso mexer no quarto poder oculto”

Paula Penedo


O que há de semelhante entre o golpe de 1964 e os planos arquitetados por Jair Bolsonaro para se manter na Presidência mesmo com a derrota nas eleições? Para a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes, repete-se a forma como agem as Forças Armadas, que historicamente não teriam um compromisso ético com a democracia. Professora colaboradora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, a docente testemunhou de perto os horrores da ditadura, primeiro como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Ação Libertadora Nacional (ALN) e depois quando o seu marido, o economista Norberto Nehring, foi torturado e morto no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo. 

Jair Bolsonaro e integrantes das Forças Armadas durante cerimônia em Brasília: na opinião de Moraes, “os militares abandonados por Bolsonaro estão em um salve-se quem puder, dispostos a entregar seus elementos mais radicais” (Foto: Reprodução)

Para a docente, fica claro existir um paralelo entre a atuação da SNI e a da Agência Brasileira de Informações (Abin), instrumentalizada sob o governo Bolsonaro para espionar os seus opositores políticos. Haveria, no entanto, uma importante diferença entre as instituições. “Essa Abin começou a ser reformulada com o [ex-presidente] Michel Temer, porém a apropriação dela deu-se mesmo no governo Bolsonaro. Como eles [os membros do governo Bolsonaro] são paranoicos e precisam saber até o que os amigos estão fazendo, não só os inimigos, foi instaurado esse sistema policialesco, perigosíssimo. Eles, no entanto, não tiveram tempo de ter aquela capilaridade, aquele grau de coesão, porque o SNI ficou 20 anos lá”, avalia. 

A professora e socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes: “O argumento de que só há golpe se o golpe realmente acontece é uma falácia porque existe no corpo das normas jurídicas a tentativa de golpe” (Foto: CPFL/Divulgação)

A professora apresenta uma lista de fatores para explicar a popularidade de figuras como Bolsonaro. Em primeiro lugar, existe um contexto de avanço “extraordinário” da extrema direita em todo o mundo; porém, na América Latina, somente o Brasil deixou de punir os seus golpistas. Além disso, enumera, as comissões da verdade são algo muito recente na história do país. Existe uma concepção de que a ditadura no Brasil teria sido mais branda do que no restante da América Latina e a má condução dos processos de indenização descredibilizou o movimento pela verdade e levou muitas pessoas a acreditarem haver um interesse puramente monetário por trás das investigações. Por último, desde a redemocratização, todos os governantes evitaram abordar esse tema.

É o caso do próprio Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista concedida recentemente, o presidente, quando questionado sobre qual deveria ser o papel das Forças Armadas no aniversário dos 60 anos do golpe militar, afirmou preferir tocar a história para frente a ficar remoendo o passado. Embora tenha reconhecido que o Brasil ainda não possui todas as informações sobre aquele período e que ainda há muitas pessoas desaparecidas, Lula ressaltou que os generais de hoje ainda eram crianças ou nem tinham nascido quando aconteceu o golpe e que a sociedade não pode tratar os militares como inimigos. 

Moraes, por outro lado, defende ser necessário abrir o histórico dos militares e promover um trabalho civilizatório com as Forças Armadas, treinadas ainda hoje para oprimir as populações mais vulneráveis. “Permanece o elemento desestabilizador, permanece o quarto poder oculto. Ninguém mexeu nisso ainda”, observa a docente. “Se agora que os militares foram pegos com a boca na botija, neste momento no qual se veem tão desmoralizados, todo mundo está cheio de dedos para puni-los, imagine o que eles fizeram naquela época. Então veja como eles são poderosos e tente projetar o que seria uma ditadura sob Bolsonaro”, sugere.

Bolsonarismo

Em meio às investigações sobre sua possível participação em uma tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente Bolsonaro convocou um ato “em defesa do Estado Democrático de Direito”. Pretendeu com isso angariar o apoio e demonstrar ainda ter poder político. Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP), 185 mil pessoas estiveram presentes na manifestação durante seu ápice, a maior concentração de pessoas medida pelo instituto nos últimos dois anos. A título de comparação, a mesma metodologia estimou a presença de pouco mais de 58 mil pessoas na Avenida Paulista durante a festa da vitória de Lula, em 30 de outubro de 2022, e de 64 mil nas comemorações do 7 de setembro de 2022 na praia de Copacabana (Rio de Janeiro). 

Apesar do sucesso da mobilização, a professora não acredita que Bolsonaro tenha saído fortalecido do evento. A docente afirma que Bolsonaro, ao admitir saber da existência da minuta decretando Estado de Defesa, a situação jurídica do ex-presidente teria se agravado. “O argumento de que só há golpe se o golpe realmente acontece é uma falácia porque existe no corpo das normas jurídicas a tentativa de golpe. Caso contrário, nenhuma das pessoas que participaram da depredação o plenário [do STF] teria sido condenada. A verdade é que ele se implicou mais. Mostrou força, presença política e apoio, mas não melhorou a sua situação jurídica”, diz. 

A professora também afirma que a mobilização não conseguiu atrair mais seguidores para o lado do ex-dirigente. Ainda de acordo com o levantamento do Monitor do Debate Político no Meio Digital, a massa de presentes na mobilização era formada por homens brancos acima dos 45 anos, em sua maioria católicos ou evangélicos e que se consideram “muito conservadores”. “Diferentemente do pessoal que invadiu o Congresso e o Supremo Tribunal Federal [STF], quem estava lá era o homem branco de nível superior e classe média. Como sempre, as mulheres e os jovens eram minoria. Desse ponto de vista, ele não saiu mais fortalecido. Então, acho que não houve nenhuma surpresa”, defende.

Como a pesquisa realizada no dia do ato demonstrou, 72% dos entrevistados eram católicos ou evangélicos. Segundo Moraes, o bolsonarismo atrai o apoio de tantos deles porque as denominações religiosas, em especial a evangélica, transformaram a política em uma luta entre deus e o diabo, disseminando falsos pavores e mexendo com o medo das pessoas – a política teria deixado de ser uma questão de divergência de opiniões. Ela reconhece, no entanto, que faltou à esquerda e aos movimentos sociais das últimas décadas a realização de um trabalho de base com a população e lembra que muitos militantes da época da ditadura se aliaram nos anos seguintes a partidos políticos, abandonando a independência profissional e trabalhando em prol de interesses próprios.

O pastor Silas Malafaia discursa no ato organizado por bolsonaristas no dia 25 de fevereiro, em São Paulo: Maria Lygia Quartim de Moraes entende que as denominações religiosas ”transformaram a política em uma luta entre deus e o diabo, disseminando falsos pavores” (Foto: Reprodução)

As denominações religiosas, por outro lado, se transformaram em grupos de apoio, especialmente entre as camadas mais vulneráveis, entrando em locais onde o próprio Estado não entrava e oferecendo suporte e poder a seus integrantes, observa a socióloga. Em sua pesquisa de mestrado realizada com detentas de um presídio paulista, a cientista social Natália Corazza Padovani, orientanda de Moraes, demonstrou que, para sobreviver dentro da prisão, as internas dispunham de apenas duas opções: ser uma mulher da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) ou pertencer a um culto. Sem uma dessas afiliações, as mulheres se viam “sem turma” e sem amparo.

“Soma-se a isso o fato de boa parte das bandeiras defendidas agora assustarem a massa da população brasileira. Para essas pessoas, nós queremos matar criancinhas, queremos que homem vire mulher e que mulher vire homem. São bandeiras que a esquerda deve carregar, evidentemente, mas que têm um preço político muito alto”, acrescenta a socióloga. “A verdade é que o Brasil é um país muito conservador. Eu comecei a minha carreira de pesquisadora em 1985, com 40 anos. Quando voltei para São Paulo e quis morar sozinha, tive dificuldade de encontrar um apartamento porque havia restrições para mulheres solteiras”, relembra.

Riscos

Embora a situação da mulher tenha melhorado desde então, principalmente no que diz respeito à autonomia e liberdade, não houve um avanço semelhante no comportamento da sociedade, especialmente entre os homens. Para se ter uma ideia, entre 2017 e 2022, os crimes de feminicídio no Brasil aumentaram 37%, indo na contramão da tendência de queda no número de homicídios (31%) verificada no mesmo período (dados do Monitor da Violência da USP). A pesquisadora avalia que isso acontece porque existe uma estrutura na qual o poder masculino iguala-se ao poder da autoridade e ao econômico, sendo muito difícil, para quem está no topo, abrir mão desse poder, algo que dá fôlego ao bolsonarismo. 

“Nas classes populares, em que o poder econômico já não é tão determinante, a presença de um homem dava respeitabilidade para a mulher. Tudo isso, porém, veio se perdendo nas últimas décadas. Então você tirou a base do poder masculino e os homens vão resistir a isso”, comenta a professora. “O Bolsonaro é uma figura que tem o carisma indiscutível do cafajeste, do macho alfa, e isso encontra ressonância nos chamados ‘tiozões’. Trata-se de homens fanáticos, sem perspectiva, que ficam pedindo intervenção militar e arriscando serem presos por conta de uma fantasia de que são heróis, salvadores da pátria, fantasia essa que dá um sentido para a vida deles”, argumenta.  

Ato denúncia organizado em frente à Câmara Municipal do Rio pela campanha Levante Feminista contra o Feminicídio: para Moraes, aumento da violência contra a mulher é decorrente da “estrutura na qual o poder masculino iguala-se ao poder da autoridade e ao econômico” (Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)

Moraes alerta ter sido por muito pouco que o Brasil não sofreu mais um golpe de Estado intermediado por militares. De acordo com a socióloga, isso não aconteceu porque a correlação de forças e a agenda internacional não permitiram, uma vez que o Exército brasileiro é “totalmente subalterno” aos norte-americanos. Além disso, avalia, os presidentes dos Estados Unidos e da França reconhecerem imediatamente a eleição de Lula, um passo extremamente importante para frear os “ímpetos golpistas” dentro das Forças Armadas. “O atual momento é bem interessante porque Bolsonaro ainda conta com o apoio do agronegócio, dos interessados em invadir as terras dos povos nativos e dos grupos conservadores. Ao mesmo tempo, os militares abandonados por Bolsonaro estão em um salve-se quem puder, dispostos a entregar seus elementos mais radicais”, avalia. 

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