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Unicamp abriga maior acervo do país sobre a ditadura e movimentos sociais

Arquivo Edgard Leuenroth guarda e preserva cerca de 200 coleções; conjunto é fonte para centenas de livros, teses, dissertações e artigos

Mariana Garcia


Aspecto do interior do Arquivo Edgard Leuenroth: fonte de pesquisas acadêmicas em várias áreas (Foto: Felipe Bezerra)

As 707 caixas de processos de presos e desaparecidos políticos recuperados pelo projeto Brasil: Nunca Mais são uma ínfima parte, ainda que essencial, do material sobre a ditadura civil-militar de 1964 preservado pelo Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp. Maior centro de documentação brasileiro dedicado à história dos movimentos sociais, o espaço recebe pesquisadores de diversos campos do saber e de várias instituições, brasileiras e internacionais, e preserva aproximadamente 200 acervos. 

“Esses acervos compõem um panorama absolutamente representativo e incontornável para quem busca conhecer a luta contra a ditadura civil-militar”, destaca o sociólogo Mário Medeiros, diretor do AEL e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade. A partir dessas coleções, já foram produzidas centenas de livros, teses, dissertações e artigos que contribuíram e contribuem para manter viva a memória desses movimentos e para promover reflexões sobre o período. “Nós, sujeitos sociais, cidadãos e cidadãs do tempo presente, temos a responsabilidade de conhecer o que ocorreu no passado para evitar os mesmos erros e os mesmos ataques à democracia e aos direitos humanos”, complementa o professor.

O professor e sociólogo Mário Medeiros, diretor do AEL: “Temos a responsabilidade de conhecer o que ocorreu no passado para evitar os mesmos erros e os mesmos ataques à democracia e aos direitos humanos” (Foto: Felipe Bezerra)
O professor e sociólogo Mário Medeiros, diretor do AEL: “Temos a responsabilidade de conhecer o que ocorreu no passado para evitar os mesmos erros e os mesmos ataques à democracia e aos direitos humanos” (Foto: Felipe Bezerra)

O material preservado no AEL tem despertado o interesse de públicos bastante variados – e movidos por objetivos diversos. A coleção Brasil: Nunca Mais, citada no início desta matéria, figura há décadas como o acervo do arquivo mais consultado, servindo de base tanto para requerimentos de anistia de presos políticos como para a investigação sobre as responsabilidades de agentes públicos por atos violentos cometidos naquele período – sem falar, claro, das pesquisas acadêmicas. “[Esse acervo] conta a história do desmantelamento de organizações e das denúncias sobre os atos violentos cometidos na época: torturas, assassinatos, prisões e desaparecimentos”, sintetiza Medeiros.

Entre os documentos sobre o regime ditatorial encontrados exclusivamente no AEL, destaca-se um conjunto de entrevistas com antigos exilados, presos políticos e militantes de organizações armadas realizadas por diversos pesquisadores, como Marcelo Ridenti, Denise Rollemberg, Jean Salles e o próprio Medeiros. Já os acervos do Partido Comunista e de Luiz Carlos Prestes são fontes fundamentais para compreender como a oposição partidária à ditadura se desenhou. “Há ainda a coleção do Comitê Brasileiro de Anistia, que trata da luta de familiares de exilados, organizações e pessoas da sociedade civil. E acervos de movimentos feministas, negros e operários, como os jornais da imprensa alternativa Lampião da Esquina, Versus, Pasquim, Movimento, Em Tempo, Mulherio, Jornal do MNU”, enumera o sociólogo.

Cada uma dessas coleções permite explorar diferentes aspectos das mais de duas décadas de ditadura civil-militar no Brasil. O acervo do Teatro Oficina, por exemplo, reúne uma significativa documentação sobre como se deu a resistência no campo cultural. Mais recentemente, com a aquisição de 14 coleções de movimentos negros brasileiros, a entidade passou a contar com registros da história ainda pouco conhecida da luta negra por direitos e contra o regime iniciada com o golpe de 1964, além de documentação sobre a participação daqueles movimentos na reconstrução da democracia. “Também foi incorporado um dos maiores acervos de movimentos de mulheres do Brasil, do Centro de Informação da Mulher [CIM], uma organização criada ainda no período ditatorial”, complementa o diretor do espaço.

As pesquisas realizadas no AEL deram origem, nas últimas cinco décadas, a mais de 500 livros, teses, dissertações, artigos e exposições. Entre as produções originadas de consultas aos acervos do arquivo e que hoje são referência para estudos sobre a ditadura e seus impactos internos e também internacionais, Medeiros destaca trabalhos de historiadores e cientistas sociais como James Green, Samantha Viz Quadrat, Beatriz Kushnir, Pâmela de Almeida Resende, Daniel Aarão Reis e Marcos Napolitano, além dos já mencionados Ridenti, Rollemberg e Salles.

O diretor aponta, ainda, a importância do projeto Documentos e Memórias da Ditadura Civil Militar e Resistência Política, criado em 2001 pela socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes (também professora do IFCH), com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e por meio de uma parceria com a Secretaria de Justiça e Paz de São Paulo. “Um conjunto de estudantes e pesquisadores passou anos coletando informações na documentação do acervo do Brasil: Nunca Mais para saber quem foram os políticos atingidos em São Paulo – presos, assassinados, torturados, mortos – e seus familiares. Esses dados foram enviados depois para a secretaria, que começaria um programa de indenização e reparação. Tratou-se de um projeto muito significativo, em termos de produção de conhecimento e responsabilidade histórica.”

Documentos e publicações que integram diferentes coleções, entre as quais a Brasil: Nunca Mais, a mais consultada do AEL (Fotos: Felipe Bezerra)

Sagacidade e coragem

O AEL chega aos 50 anos em junho. Foi fundado, portanto, dez anos após o golpe deflagrado pelos militares em 1964, com a chegada à Unicamp do arquivo adquirido da família do paulista Edgard Leuenroth. Jornalista, tipógrafo e militante anarquista, Leuenroth reuniu e organizou uma ampla documentação sobre os movimentos sociais que eclodiram nas primeiras décadas do século 20 no Brasil e sobre a formação do proletariado no país no mesmo período. 

A aquisição daquele que era o maior arquivo da história anarco-sindicalista no Brasil por uma universidade estatal, quando a ditadura vivia seu auge, partiu de uma iniciativa encampada por três professores da instituição, o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro e os historiadores Marco Aurélio Garcia e Michael Hall, que pesquisavam a história do movimento operário brasileiro. O trio, conta Medeiros, não apenas convenceu a reitoria da Universidade a adquirir o acervo de Leuenroth como criou o projeto para o financiamento, via Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de sua compra, além de encontrar um local para sua conservação até a chegada dos documentos ao campus. “Junto à coragem e sagacidade dos três, devem ser mencionados a disposição de setores da Unicamp em criar o centro de pesquisa e o convencimento que os três, e em particular Pinheiro, foram capazes de instilar nas pessoas.”

Da esq. para a dir., Marco Aurélio Garcia, Paulo Sérgio Pinheiro e Michael Hall, os três fundadores do AEL, na inauguração da sede atual, em novembro de 2009 (Foto: Antonio Scarpinetti)

Em um discurso realizado durante a solenidade que lhe outorgou o título de Doutor Honoris Causa, no ano de 2022, Pinheiro lembrou da empreitada que permitiu a construção de um espaço dedicado, à época, a conservar sobretudo jornais e outras peças de divulgação anarquistas e de movimentos de trabalhadores do Brasil. “A pesquisa recebeu apoio do então ministro da Indústria e Comércio, Severo Gomes. O general e presidente Ernesto Geisel queria entender por que a secretaria de apoio industrial apoiava tal pesquisa, e o ministro respondeu, meio maroto: ‘Mas, general, como estudar a industrialização sem analisar os operários?’.”

Além de preservar a memória social e a multiplicidade de vozes que marcam o país, o espaço tem como missão a produção e a difusão de conhecimento de forma pública e gratuita.  “Isso constitui uma ferramenta fundamental na defesa ampla da democracia e do respeito aos direitos civis, sociais e políticos e às diferenças, ou seja, na defesa de tudo aquilo que sofreu ataques nos últimos oito anos, desde o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, ela mesma uma ex-presa política cujo processo se encontra preservado no AEL”, pontua Medeiros.

Nos últimos anos, o espaço ampliou seu escopo, norteado pelas mudanças sociais vividas pelo país, e passou a buscar registros daqueles setores cujos direitos estavam (ou ainda estão) sob ameaça. Desde 2020, o AEL tem investido em angariar materiais para preservar a memória de movimentos negros, feministas e LGBTQIA+, estabelecendo, assim, um diálogo com o momento social e político do Brasil e da própria Unicamp. 

Para o futuro, o diretor identifica a necessidade de ampliar a presença de acervos dos povos originários, acompanhando as mudanças implementadas pela Universidade nos últimos anos (como a consolidação de seu Vestibular Indígena). O AEL tem como foco, pontua o docente, “o ângulo dos subalternos, dos trabalhadores pobres, das minorias políticas [mulheres, indígenas, negros, homossexuais, deficientes]. Enfim, o ângulo daqueles historicamente perseguidos, de diferentes formas e com diferentes níveis de intensidade, no passado e no presente”.

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