Um estudo realizado no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, em parceria com outras instituições de pesquisa do Brasil e do exterior, confirmou a circulação do vírus mayaro (MAYV) entre humanos em Roraima. A descoberta foi feita pela bióloga Julia Forato, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular do IB, e divulgada recentemente pela revista Emerging Infectious Diseases, publicação do Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (ou CDC, na sigla em inglês). Para identificar o vírus, a pesquisadora utilizou técnicas clássicas de virologia, como o isolamento viral, além do sequenciamento de nova geração – um tipo de ensaio molecular. Desta forma, constatou tratar-se de uma linhagem de MAYV pertencente ao genótipo D, o mesmo identificado anteriormente no Amazonas, no Peru e na Venezuela.
![Júlia Forato, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular do IB](https://www.jornal.unicamp.br/wp-content/uploads/sites/32/2024/05/Forato-993x1024.jpg)
Considerado endêmico nos continentes centro e sul-americanos, onde também é tido como negligenciado, o patógeno foi identificado pela primeira vez nas ilhas caribenhas de Trinidad e Tobago, na década de 1950. Considerado um arbovírus – vírus transmitido por mosquitos silvestres –, tem como vetor o Haemagogus janthinomys, mosquito silvestre conhecido por disseminar a febre amarela. Até agora, não há registros de transmissão do vírus mayaro no Brasil por mosquitos urbanos, como o Aedes aegypti, conhecido pela relação com a dengue. Na floresta, onde é mais comum, o MAYV infecta vertebrados que habitam as copas de árvores, como primatas, aves e roedores. Uma vez no organismo desses animais – chamados de hospedeiros amplificadores ou mesmo reservatórios –, é capaz de se replicar, ficando à espera da picada do mosquito para dar continuidade à disseminação.
Em seres humanos, a infecção por vírus mayaro causa uma doença febril aguda, facilmente confundida com dengue e febre chikungunya, por produzir, como principais sintomas, dores no corpo, fadiga, artralgia, dor e inchaço nas articulações. No Brasil, a detecção de MAYV foi historicamente registrada em estados da região Norte, como Acre e Pará, além do já citado Amazonas. Em Roraima, já havia sido detectado em animais em áreas de transição entre áreas rurais e urbanas.
Boa parte da pesquisa realizada por Forato se deu no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve), do IB, sob orientação do professor José Luiz Módena. A docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR), a bióloga Fabiana Granja também participou como coorientadora. Forato analisou amostras de soro exclusivamente de pacientes em estado febril coletadas pelo Laboratório Central de Saúde Pública de Roraima entre 2020 e 2021, durante um período em que a região enfrentava uma epidemia de dengue, logo após um surto de febre chikungunya. A mestranda testou, em sua amostragem, a ocorrência de oito arbovírus. O trabalho envolveu, ainda, técnicas como a amplificação em cadeia da polimerase, ou PCR (das iniciais de Polymerase Chain Reaction, em inglês), que permite aumentar e quantificar trechos do material genético para que se possa, eventualmente, sequenciá-los e compará-los a dados já catalogados.
O resultado revelou a presença de MAYV em 3,4% das pessoas testadas. Algumas delas, pontua a mestranda, não haviam relatado qualquer atividade laboral em área de mata, dando margem para a possibilidade de o vírus ter circulado em áreas urbanas de Roraima. O resultado de sua análise, complementa Modena, confirmou a hipótese ao identificar o arbovírus em praticamente todo o estado, inclusive dentro das cidades, não apenas nas áreas rurais e florestais. “Julia extraiu e sequenciou o genoma completo do vírus, o que tornou possível saber que se trata de um arbovírus do mesmo clado [grupo de organismos] de amostras da Venezuela e do Peru. Com isso, podemos saber um pouco mais sobre os padrões atuais de disseminação, expandindo nossa base de dados para exemplares atuais de MAYV, além daqueles que foram caracterizados desde o começo dos anos 1950”, afirma o professor.
A descoberta é fruto de uma parceria internacional que resultou na formação de um grupo para avaliar os impactos do aquecimento global e da atividade humana sobre a floresta tropical na disseminação de vírus emergentes. O esforço mobilizou 17 pesquisadores, duas universidades inglesas (Oxford University e Imperial College London) e três instituições norte-americanas (University of Kentucky, University of Texas Medical Branch e Global Virus Network), além da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Fiocruz Amazonas.
Trata-se do primeiro resultado do trabalho desse conjunto de cientistas como parte da iniciativa Amazônia +10, programa lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e com o Conselho Nacional das FAPs à Pesquisa (CONFAP). A realização contou com o apoio da Global Virus Network, do Wellcome Trust, do Burroughs Wellcome Fund, da Fundação Bill & Melinda Gates, e do National Institutes of Health (NIH na sigla em inglês) – a agência governamental de pesquisa biomédica dos EUA.
![Júlia Forato confirmou a circulação do vírus mayaro em pesquisa sob orientação de José Luiz Modena](https://www.jornal.unicamp.br/wp-content/uploads/sites/32/2024/05/VirusMayaro1-1024x683.jpeg)
Relógio molecular de um vírus americano
Por provocar sintomas semelhantes aos de outras arboviroses bastante comuns no país, chegar ao diagnóstico correto de mayaro por critérios clínico-epidemiológicos é tarefa bastante difícil. “A hipótese diagnóstica original para todos os que testaram positivo para chikungunya ou mayaro era dengue”, observa o docente. O principal diferencial em relação à dengue é a probabilidade maior de causar artralgia e artrite crônica, condição em que as dores e inchaços nas articulações se prolongam e se tornam incapacitantes – como já ocorre com boa parte dos pacientes acometidos pela febre chikungunya. “Cerca de 50% das pessoas que têm artralgia [provocada por chikungunya] vão desenvolver sua versão crônica, podendo ficar até seis anos sofrendo com dores intensas que, dependendo da profissão, a impedem de trabalhar. É um problema social.”
À exceção do estado febril, nem todos os indivíduos testados na pesquisa apresentaram sintomas quando tiveram suas amostras coletadas. A segunda queixa principal foi dor de cabeça (82% dos participantes), dor e inchaço nas articulações (21%) e erupção cutânea (11%). “Os sinais relatados são muito gerais e podem indicar uma vasta gama de doenças, inclusive aquelas que não são causadas por vírus, mas por bactérias ou parasitas”, observa Forato, frisando a necessidade da realização de testes moleculares, feitos a partir da análise do material genético, para um diagnóstico correto.
Uma porção significativa das pessoas diagnosticadas com o vírus mayaro exercia alguma atividade laboral que exigia a entrada na floresta ou na região periurbana (faixa entre a mata e a cidade), como pesca (11% dos infectados) e coleta de castanhas, o que é um indicativo da influência do avanço da atividade humana para a propagação do MAYV. Já a incidência em Roraima — estado que faz fronteira com a Venezuela e a Guiana — serve de alerta, afirma Modena. “É uma região impactada por migrações. A capital, Boa Vista, tem uma atividade comercial intensa. Pode afetar a dinâmica de circulação do vírus.” O professor acredita que, com um aumento no número de genomas sequenciados de mayaro, poderemos, no futuro, construir o “relógio molecular” desse vírus, estimando a velocidade da sua taxa de mutações e estabelecendo suas rotas de migração, para, finalmente, traçar sua história molecular.
O estudo evidenciou a circulação simultânea dos vírus mayaro e chikungunya em Roraima, surpreendendo os pesquisadores. “Não esperávamos encontrar os dois no mesmo lugar, pois estudos indicam que a infecção por um vírus pode, eventualmente, proteger a pessoa de ser infectada pelo outro, por serem muito parecidos”, diz o professor. Embora apresentem similaridades estruturais e causem sintomas semelhantes, por enquanto somente há registros do MAYV no continente americano. Segundo os pesquisadores, a limitação geográfica seria uma das causas principais do pouco investimento em pesquisas voltadas para diagnóstico e tratamento da doença que provoca.
No Brasil, a confirmação da presença do vírus no Centro-Oeste também aponta o risco de uma disseminação. “Em laboratório, já foi constatada a capacidade do Aedes aegypti em transmitir também o mayaro”, alerta a pesquisadora. Apesar da experiência laboratorial não assegurar que o mesmo aconteceria fora dali, o experimento sinaliza o risco da ocorrência de uma nova epidemia. “Como as pessoas não tiveram contato com esse vírus, são mais suscetíveis a ter uma infecção.”
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