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Para gostar de ler artigos científicos

Peter Schulz: "É possível aprender sobre ciências (naturais) sem vasculhar os textos, ou seja, os artigos pelos quais esses cientistas se expressaram? Não só no ensino superior especializado, mas também no ensino médio?"

Para Gostar de Ler é o nome de uma coleção de pequenos livros com textos de grandes escritores, um enorme sucesso editorial da Ática que começou nos idos dos anos 1970. Era destinada a estudantes do ensino fundamental e médio, um incentivo à leitura. Hoje só se encontram essas obras, pelo que vi, nos sebos virtuais e reais. Começando pelas crônicas, a coleção passou também por poesias e contos, pela literatura africana e pela ficção cientifica. De Rubem Braga a Edgar Allan Poe, de Stanislaw Ponte Preta a Franz Kafka, ou dos mitos indígenas brasileiros a contos africanos. Os volumes vinham com encartes para ajudar na intepretação dos textos. Eram deliciosos e alcançaram enormes tiragens para as dimensões do universo brasileiro. Uma breve história, uma relação dos volumes e a lista de autores presentes podem ser apreciadas em um blog[i]. As aulas de literatura no ensino médio também se debruçavam sobre textos originais, ainda que organizados por meio de seus manuais, como o Literatura Brasileira Através dos Textos, de Massaud Moisés. Essa é a grande diferença em relação às disciplinas de ciências – Biologia, Química e Física –, com seus manuais de ensino sem o “através dos textos”, seja no ensino médio ou no superior. Há razões para isso. Não seria viável ensinar em um ou dois semestres a mecânica clássica, por exemplo, usando os textos originais de Isaac Newton. Durante a faculdade, com sorte, o “através dos textos” fica por conta de alguma disciplina eletiva dos currículos das ciências naturais. E todos parecem contentes, afinal “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Será? É possível aprender sobre ciências (naturais) sem vasculhar os textos, ou seja, os artigos pelos quais esses cientistas se expressaram? Não só no ensino superior especializado, mas também no ensino médio?

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Venhamos e convenhamos, artigos científicos são, em sua grande maioria, chatos de ler. Dizem que os cientistas (naturais) ligam pouco para o texto que escrevem, textos que evoluíram de algo mais subjetivo há alguns séculos para um formato impessoal, com estrutura rígida e abusando de nomenclaturas específicas para fins de clareza quando levados em conta os que dominam os códigos de cada área ou subárea do conhecimento em questão[ii]. Assim, durante o ensino médio não aprendemos o que são esses artigos científicos e, no longo aprendizado da pesquisa científica, os pesquisadores se limitam a ler, quase que exclusivamente, os artigos, na maioria chatos, relacionados ao projeto de cada um. Alguns muitos diriam que é assim mesmo, pois, para fazer a ponte entre o “cientista que faz ciência” e o público, especializado ou não, criou-se a divulgação científica. Essa é certamente necessária e pode ser prazerosa, tanto na leitura, quanto na escritura, à qual cientistas também se dedicam[iii]. Mas voltemos à literatura. A divulgação científica carrega uma certa analogia com a crítica literária e não é possível apreciar literatura só lendo críticas literárias, ponto a respeito do qual, acredito, todos concordamos. Então o que se poderia fazer?  Entre a maioria de artigos científicos que eu chamei de chatos, existem alguns excepcionais, que, com algum guia de interpretação de textos, nos apresentam como a ciência é feita de fato, ou já foi feita, sugerindo práticas e cuidados algo esquecidos e que voltaram a ser debatidos atualmente.

Não parei muito para pensar uma lista de exemplos para o ensino médio, mas pelo menos um deveria ser lido nesse contexto. Trata-se do artigo de J. Watson e F. Crick desvelando a estrutura do DNA, cujos 70 anos de publicação completaram-se em 2023. O artigo tem apenas uma página, seguido, é claro, na mesma edição, pelos artigos parrudos com os detalhes da descoberta, publicados pelos cientistas, mais ou menos reconhecidos, envolvidos na descoberta. O artigo, que revolucionou a biologia e valeu o Prêmio Nobel, apresenta em sua simples página aspectos fundamentais do fazer ciência. Trata-se de um artigo científico, mas bem que poderia ser um artigo de divulgação, ou parte de um livro-texto (manual). Lá estão declaradas a importância do assunto, a existência de disputas entre cientistas na busca por respostas e a imperativa necessidade da troca de informações entre cientistas no processo da descoberta, bem como as tentativas e os erros, registrados nas poucas entrelinhas do curto artigo. Alguns termos técnicos, a tal nomenclatura especializada, pode ser abstraída e, em aula, é possível “pular” esses termos e ler o essencial. E uma pergunta de interpretação de texto: qual seria a frase mais relevante do artigo?

Proposta de resposta: “Não fugiu à nossa atenção que o pareamento específico que postulamos sugere imediatamente um mecanismo possível para a cópia de material genético”.

A ilustração é a reprodução da tal página no original (faltando umas poucas linhas de referências, que ficaram na página seguinte, junto com a primeira página de um dos artigos “parrudos” publicados na sequência).

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Se apresentar e discutir isso no ensino médio é realmente uma boa ideia, então outras pessoas também já a tiveram e eu peço desculpas por não estar informado e não mencionar essas iniciativas, anônimas ou não. A ignorância é minha. Vale mencionar ainda que existem traduções para o português do artigo, uma delas de Renato Vicente, da Universidade de São Paulo (USP)[iv].

Pensando no ensino superior de ciências, pelo menos outros dois artigos me encantam há anos e acredito que todos os estudantes universitários envolvidos, estejam na graduação ou na pós, deveriam ler. Coincidentemente são o primeiro e o último capítulo (que foi seguido por muitos epílogos) de uma saga incrível da ciência: o desvendamento do chamado movimento browniano, algo que tentarei definir mais à frente.

O primeiro desses artigos é do começo do século XIX, inicialmente um panfleto, distribuído para amigos e colegas, mas logo reproduzido em revistas científicas da época. O autor desse panfleto/artigo, e de um segundo, respondendo a críticos, foi Robert Brown, um botânico escocês. O artigo inicial, de 1828, descrevia suas observações ao longo de 1827. E o que ele observou ao microscópio? Um movimento desorganizado de grãos de pólen suspensos em gotas de água, daí o nome de movimento browniano. O artigo é de uma leitura deliciosa, com Brown descrevendo suas observações ao longo de vários meses, um texto que parecia “convidar os leitores a participar de suas pesquisas”, como comenta Peter Scott[v]. O botânico estava interessado na reprodução de plantas, mas, então, que movimento era aquele? O artigo relata a saga para desvendar as causas desse movimento. A causa seria a forma dos grãos? Brown conseguiu concluir que não. Seria devido a algum movimento vital (como o vai e vem de girinos na água), afinal o pólen vinha de plantas vivas? Não, grãos inanimados também dançavam ao microscópio da mesma forma. O artigo descreve ainda sucessos e fracassos (somos instados a só relatar sucessos, mas hoje, pelo bem da ciência, manifesta-se a necessidade de relatar fracassos também, afinal isso é ciência). Brown escreveu 28 páginas, fazendo uma espécie de etnografia de seres inanimados (que sei ser uma contradição em termos), usando somente texto, sem figuras. A ilustração traz as reproduções da capa da publicação, a primeira página e a última, com o início da resposta aos críticos. Aos leitores de artigos científicos de hoje em dia, pergunto: como vocês descreveriam movimentos sem figuras e vídeos?

Artigo original e Robert Brown
Artigo original e Robert Brown

Vejam ainda que na capa aparece o curioso aviso de “não publicado”. E na primeira página uma enorme nota de rodapé, alusiva ao primeiro e curto parágrafo, no qual ele afirma que todas as observações foram feitas com um microscópio simples. Na nota, o cientista diz que possuía um microscópio mais poderoso, “mas, para dar maior consistência às minhas afirmações e para trazer o assunto ao alcance de observação geral tanto quanto possível, continuei a empregar ao longo de toda a investigação as mesmas lentes com que eu havia começado [o estudo]”.

As lentes mais simples pertenciam a outro microscópio, mais acessível. Elegantemente, Brown menciona na nota o nome dos instrumentadores de ambos os equipamentos. O que a nota nos diz? A importância de que descobertas sejam reproduzidas e verificadas da maneira mais ampla possível. Hoje se exige a publicação dos dados originais junto com a dos artigos. “Ah, para evitar fraudes, não é mesmo?” Brown só podia compartilhar seu texto, junto com a generosidade e honestidade na sua nota de rodapé, com a mensagem da reprodutibilidade nas ciências naturais, mensagem essa que não parou de ganhar importância. A história que se seguiu é longa, mas podemos pular para o final dela.

Qual é a origem desse movimento? Partículas bem pequenas, como grãos de pólen, apresentam um movimento de microscópicos passos errantes na água. A causa desse movimento é o choque desigual das moléculas de água, levando o grãozinho microscópico imerso no líquido a cambalear para lá e para cá. A explicação baseia-se na existência dos átomos (ou moléculas de água no caso), que provocam a estranha dança, um para cá, dois para lá, dos grãozinhos. Chegou-se à conclusão de as moléculas de água agirem como parceiros de dança após décadas de pesquisas, mas só Albert Einstein conseguiu descrever em média sua coreografia, e isso em um dos artigos do seu famoso “ano miraculoso”, 1905. O título desse seu artigo já resume a descrição matemático-estatística (a coreografia) apresentada pelo físico alemão: “Sobre o movimento de partículas suspensas em líquidos em repouso devido à teoria cinético-molecular do calor”. No primeiro parágrafo, Einstein declara que o movimento em pauta seria possivelmente o chamado “movimento molecular browniano”, mas que, com as informações disponíveis, não poderia dizer mais nada sobre essa comparação (mas já no ano seguinte ele reconhece e tasca o título em um novo artigo: “Sobre a teoria do movimento browniano”). O artigo de 1905 termina com a manifestação do desejo de “que seja possível em breve para um pesquisador ser capaz de decidir sobre a importante questão aqui colocada para a teoria do calor!”. Isso mesmo, o físico alemão termina o artigo com um ponto de exclamação.

Com essa breve alusão a Einstein, vamos ao segundo artigo, que os estudantes de ciências duras deveriam ler (ou pelo menos folhear). Trata-se de um artigo de 1909 do físico francês Jean Perrin, cujo título é “Movimento browniano e realidade molecular”. A leitura de suas 110 páginas requer um esforço bem maior. Não vou insistir na ideia de que todos o leiam na íntegra, mas passear por suas páginas revela-se uma aula sobre como se faz ciência e o que a motiva. Comecemos pela capa de sua tradução para o inglês e o nome do tradutor, Frederik Soddy. O artigo de Perrin foi fundamental e seu autor ganhou, devido a ele, o Prêmio Nobel de Física de 1926. Mas o tradutor do artigo não era um anônimo qualquer. Soddy levou o Nobel de Química em 1921.

Capa da tradução para o inglês do artigo de Jean Perrin.
Capa da tradução para o inglês do artigo de Jean Perrin

Nos dias de hoje, a principal preocupação (quando não exclusiva) é a publicação de artigos (bem mais curtos, em inglês), mas, no começo do século XX, um já renomado cientista se dedicou a traduzir um calhamaço de mais de cem páginas para os leitores anglófonos não familiarizados com a língua do original. Com esse detalhe em mente, passemos ao artigo em si, cuja versão em inglês está em diferentes sítios[vi]. Basta talvez passear pelos títulos das seções e pescar um outro parágrafo. Após destacar na primeira página o quanto aquele movimento browniano escapa da nossa visão cotidiana dos fenômenos macroscópicos, Perrin segue descrevendo uma verdadeira aventura de muitos passos dados, ao longo do tempo, por vários cientistas que deslindaram o inusitado fenômeno microscópico. O pesquisador comenta em detalhes esses passos, valendo-se inclusive de citações diretas de seus predecessores. É física descrita por meio de sua história, passando pela discussão de seus métodos, a relação entre teorias e experiências, as diferentes hipóteses, os detalhes da preparação dos grãozinhos utilizados, as minúcias das observações e dos instrumentos para tal, as tentativas e as percepções dos erros até chegar à conclusão, título da seção 23 do artigo, de que “a agitação molecular é de fato a causa do movimento browniano”. Um dos objetivos principais dessas primeiras 50 páginas é mostrar também o caminho para a determinação precisa da constante de Avogadro, de que talvez todos se lembrem por conta das  aulas de química no ensino médio. E Einstein só aparece lá na página 51, de onde extraio o seguinte parágrafo:

“Os experimentos anteriores permitem, como vimos, estabelecer a origem do movimento browniano, bem como determinar as dimensões das diferentes moléculas. Mas um outro avanço experimental foi possível, sugerido por Einstein na conclusão de sua bela investigação teórica e sobre a qual agora preciso falar”.

Jean Perrin desenha a “coreografia” do movimento browniano de partículas em suspensão, que Robert Brown descrevera apenas em texto
Jean Perrin desenha a “coreografia” do movimento browniano de partículas em suspensão, que Robert Brown descrevera apenas em texto

A conclusão de Einstein que ele menciona e reproduz em uma nota de rodapé é aquela frase com o ponto de exclamação. E as 50 páginas seguintes são dedicadas a isso: verificar experimentalmente e por imagens a teoria do colega alemão. Perrin também descreve em detalhes as diferentes tentativas e os vários percalços para “medir” a “coreografia”, incluindo agora fotos e gráficos, ausentes nos trabalhos de épocas anteriores. No final de seu longo artigo, o cientista declara achar que “de agora em diante será difícil defender por meio de argumentos racionais uma atitude hostil às hipóteses moleculares…”. E depois acrescenta: “Não há razão para opor dois grandes princípios, um contra o outro…”. Aqui somos instigados a olhar para o contexto da época: havia uma escola importante contrária à hipótese de que átomos e moléculas fossem necessários para descrever a física das coisas[vii]. Perrin acabou com essa polarização na ciência, a qual, entre outras coisas, contribuiu para que Einstein aceitasse o famigerado emprego em um escritório de patentes, em vez de obter um cargo em uma universidade.

É preciso ler mais, ou pelo menos namorar, os textos de “cientistas que fazem ciência”, mas que discutem também a história, a filosofia sem serem filósofos e as metodologias científicas e que contribuem para mostrar as polarizações na ciência como falsos dilemas.  E, por que não?, tentar escrever desse jeito os próximos artigos, a fim de que tenhamos menos artigos, mas mais sabedoria[viii].

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[i] https://rubem.wordpress.com/2014/05/29/a-historia-da-colecao-para-gostar-de-ler

[ii] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/matou-cascavel-e-publicou-o-pau

[iii] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/para-quem-os-cientistas-escrevemos

[iv] https://www.ime.usp.br/~rvicente/WatsonCrick_portugues.pdf

[v] http://physics.ucsc.edu/~drip/5D/brown/brown.pdf

[vi] https://web.mit.edu/swangroup/footer/perrin_bm.pdf

[vii] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/vida-longa-para-o-atomo-de-bohr

[viii] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/12/menos-artigos-mais-sabedoria.shtml

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