Conteúdo principal Menu principal Rodapé

Como a ciência foi do papel à nuvem?

"O primeiro artigo a gente não esquece, mas já não me lembro daquele que foi o meu primeiro em que todo esse processo manual, analógico e impresso foi sendo substituído por etapas eletrônicas e digitais sem papel e correio físico"

A minha primeira publicação de artigo em um periódico científico internacional, desses indexados, com revisão por pares, foi em 1987. Tudo em papel. O artigo, já escrito com algum editor de texto, que não existe mais, em algum computador, hoje inimaginavelmente obsoleto, era impresso em três cópias, enviadas junto com uma carta, também impressa, pelo correio. Semanas depois vinha uma carta, que confirmava o recebimento lá na editora. O editor então enviava duas cópias para os pareceristas, que respondiam por cartas. O conjunto, pareceres e carta do editor, chegava depois pelo correio às minhas mãos. Com as correções solicitadas feitas no artigo, recomeçava todo o processo. Por fim, notícia do artigo aceito, aquela terceira cópia impressa, que ficara com o editor, voltava com marcações coloridas a lápis, indicando o que seria caixa alta, o que seria em negrito, como as equações seriam editadas, de acordo com o guia de edição anexo, parecido com o da ilustração publicada aqui. Nova carta para o editor, concordando com as indicações de edição. Mais um pouco e chegavam as provas do artigo para minha apreciação, afinal alguém lá na editora transcreveu e editou o meu texto impresso, junto com as indicações de edição feitas pelo editor ou um assistente, e as figuras encaixadas no meio do texto. As figuras compunham um capítulo à parte: as originais, enviadas inicialmente junto com as cópias impressas, eram a nanquim sobre papel vegetal (tínhamos desenhistas para profissionalizar nossos rascunhos). Artigo aceito, as figuras iam para o laboratório fotográfico lá da editora. Tudo manual e analógico, um trabalho de várias pessoas. E havia o formulário sobre o pagamento desse processo.

Do papel à nuvem

Nós do terceiro mundo de então éramos perdoados pela inadimplência com o envio de carta respeitosa pedindo desculpas e a isenção por falta de recursos. Os periódicos se sustentavam pelas assinaturas das bibliotecas, o tal acesso fechado, mas contavam também com os pagamentos dos autores para publicação, as page charges. Nós que não pagávamos desconfiávamos que talvez sofrêssemos alguma demora adicional na publicação, mas esses rumores, segundo minha experiência pessoal, nunca se confirmaram. O primeiro artigo a gente não esquece, mas já não me lembro daquele que foi o meu primeiro em que todo esse processo manual, analógico e impresso foi sendo substituído por etapas eletrônicas e digitais sem papel e correio físico. A maioria dos pesquisadores em atividade hoje em dia não passou por essa transição, do final do século passado e começo deste, e talvez não se dê conta de que, mesmo sem papel, novas transições continuam ocorrendo, que vão sendo incorporadas sem muito espanto e com imediata aceitação – afinal queremos todos ver os nossos artigos publicados. Assim vale a pena relembrar as promessas, os dilemas e os embates sobre como fomos do papel à nuvem digital na ciência.

Antes de mais nada, é preciso apresentar também um resumo de como estamos hoje nesse processo. Todas as revistas têm os seus portais eletrônicos, nos quais os artigos publicados, organizados em volumes e números como antigamente, podem ser acessados com um clique, seja para ler na tela ou para baixar o arquivo, como portable document format, vulgo PDF, para leitura posterior. Nos portais têm-se também as abas de submissão de artigos, com instruções para os autores, ficha de cadastro, página para carregar o texto original e as eventuais figuras, página de rosto com as informações sobre os autores, checagem de referências e adequação do formato. Pareceristas contam ainda com sua aba, contendo a página de cadastro, o registro de senha, o artigo a ser avaliado já disponível em PDF e o formulário de avaliação, no qual se respondem perguntas sobre o artigo: sim, mais ou menos, não. E os campos para comentários a serem preenchidos. Tudo digital, nenhum ou pouco trabalho manual como antes, exceto a mensagem do editor para autor com o veredito, ainda por correio, eletrônico e não por papel, claro. Quase tudo automatizado, e boa parte da edição, caso o artigo tiver sido aceito, já realizado pelos próprios autores no processo de submissão. As assinaturas dos periódicos pelas bibliotecas, porém, não diminuíram de valor, pelo contrário. Aumentaram substancialmente e surgiram as taxas de publicação para o acesso aberto, substituindo as page charges. E muito rápido subiram estratosfericamente, quando não astronomicamente. É o tal modelo de negócios de acesso aberto.

Tudo isso do ponto de vista do autor, aquele que quer compartilhar o conhecimento produzido. E do lado do consumidor, aquele que quer acesso ao material publicado? Hoje, como mencionado no parágrafo anterior, os periódicos científicos estão online para consulta e leitura de artigos (caso você tenha acesso à assinatura ou caso o artigo em questão seja de acesso livre). Há 30 ou 40 anos, tratava-se de algo, digamos, mais romântico. Entrava-se na biblioteca, vasculhavam-se os volumes de um dado periódico, podia-se até retirá-lo por uma semana para recôndito do seu gabinete, mas aí era constrangedor a batida na porta de algum colega, pedindo acesso àquele exemplar. A solução, fazer uma fotocópia do artigo de interesse e assim os periódicos pouco saiam da biblioteca. Tirar cópias de artigos violava direitos autorais, existiriam sanções. O controle, no entanto, era difícil e ninguém ligava. Nem os leitores, nem a instituição. Afinal o número de fotocopiadoras se multiplicava nas bibliotecas. Em princípio, porém, tratava-se de algo ilegal e a comunidade científica praticava a pirataria de material impresso.

Esse é um parco resumo da transição do papel para a nuvem, que começou de fato com a internet comercial, entre 1995 e 1996, um processo que prometia soluções. A discussão, no entanto, começou bem antes. No início da década de 1980, o debate começava a entrar em ebulição em torno de vários pontos do quadro nostálgico relatado até aqui. Uns tempos atrás, folheei periódicos em papel dentro da biblioteca, prazer saudoso e de descobertas com cheiro de papel. Deparei-me, a esmo, com um interessante artigo, cujo título traduzido é “Comunicação em Física – o uso de periódicos”, publicado em 1982 na revista Physics Today [i]. A chamada após o título (linha fina no jargão jornalístico) anunciava: “Pesquisas de opinião e análises revelam o interesse de leitores, autores, editores e bibliotecas, indicando que o ‘periódico eletrônico’ pode ser viável”. Em uma época na qual a internet que conhecemos hoje não existia e o correio eletrônico começava lentamente a ser viável[ii], não era possível imaginar direito o que seria o “periódico eletrônico”, como a charge que acompanhava a matéria sugere claramente aos leitores do século seguinte. 

Como a ciência foi do papel à nuvem?

O artigo começa por apresentar os problemas relacionados ao custo das assinaturas dos periódicos. Até os anos 1970, e ainda no começo da década seguinte, era comum que os pesquisadores mesmo assinassem as revistas que lhes interessavam. Isso, porém, passou a ser muito caro e os interessados começaram a desistir das assinaturas individuais e recorrer aos acervos das bibliotecas, voltando ao citado problema do acesso a um exemplar, simultaneamente, por mais de um pesquisador. Assim proliferou-se a “era das separatas”: os chamados preprints, reprints e… as fotocópias, oficiais (pagas) e piratas. Por alguma razão, os custos de edição tornaram-se muito altos, não sendo mais (segundo as editoras) cobertos pelas assinaturas. Solução: começar a cobrar os autores para custear a edição, nosso fantasma mencionado acima. Parece que, pelo menos na comunidade da física, quase todo mundo pagava, não com recursos próprios, mas com financiamento do governo (como aparece em uma tabela neste artigo de 1982). Esse “quase todo mundo” refere-se, claro, à comunidade no Hemisfério Norte.

O custo médio por artigo das page charges era de US$ 500 em média para periódicos do American Institute of Physics. Em valores atuais, o equivalente aproximadamente a US$ 1.600. Valor substancialmente abaixo das APCs (article processing charges) de hoje, que garantem acesso aberto aos artigos, coisa que as taxas de antanho não propiciavam. Nem poderiam, pois só havia revistas impressas. O periódico eletrônico imaginado na época não é o periódico todo online, aos quais nos acostumamos. Referia-se às tecnologias que transformariam a edição analógica das revistas em digital, em uma distribuição mais eficiente e rápida de artigos individuais, as tais separatas. Os periódicos continuariam a ser periódicos, guardados em bibliotecas, pois, citando este artigo de 1982:

Autores, editores, bibliotecas e leitores também colocam amplas restrições ao uso de um sistema de periódico eletrônico. Um problema é a falta de incentivo de mudança para esses atores. Autores, por exemplo, são incentivados em parte a publicar por prestígio e reconhecimento. Qualquer sistema de comunicação alternativo precisa contemplar as necessidades perceptíveis daqueles que estão em ambientes “publique ou pereça”, que existem em algumas áreas da ciência e em organizações.

Outras restrições imaginadas foram discutidas, mas vou me ater à citação acima, recorrendo a um artigo de opinião de dez anos depois, publicado na Nature por seu então editor, John Maddox: “Periódicos eletrônicos têm futuro – uma conferência sobre as mudanças nos padrões de publicação de periódicos sugere que os periódicos eletrônicos já chegaram, mas sua gestão continua sendo um problema para o futuro”[iii]. O cenário de hoje sugere que esses problemas foram resolvidos, pelo menos para as editoras, mesmo porque, logo que a internet comercial tornou possível os periódicos eletrônicos de fato, como conhecemos, toda uma tribo acadêmica se debruçou sobre essas questões e criou-se, claro, um periódico científico para isso, The Journal of electronic publishing[iv], indexado na Scopus. O índice do número de lançamento (janeiro de 1995) vale uma visita: quase todos os artigos são sobre aspectos econômicos, precificação, estrutura de custos, licenciamentos, gestão etc. Ou seja, como viabilizar o negócio.

Voltando ao artigo do editor da Nature em 1992. Um trecho dele me chamou a atenção, pois elabora parte do que aparece no artigo de dez anos antes na Physics Today:

O que impulsiona esse imenso e dispendioso crescimento [número de publicações científicas]? Mesmo considerando o aumento considerável da comunidade acadêmica, as severas críticas aos artigos duplicados e a publicação em série de relatórios provisórios de avanços insignificantes (“fatias de salame”), o fenômeno merece explicação.

O tópico comum na maioria das explicações [sobre publicação eletrônica] é que publicar tornou-se uma espécie de imprensa da vaidade, existindo para servir os interesses de seus contribuidores. E por que esse interesse tão clamoroso? Que uma pesquisa não publicada pode muito bem ser considerada como não realizada é um princípio geralmente aceito, mas o uso de trabalhos publicados, quem sabe até ponderados pelo número de citações, tornou-se também uma influência corriqueira nas designações e promoções acadêmicas.

Tendo presenciado essa transição e aceitado as boas-vindas a esse admirável mundo novo, pareceu-me importante compartilhar essas histórias, dentre outras que ficaram de fora[v], com aqueles que começaram a carreira já no novo mundo. As citações logo acima lembram uma vez mais que coisas do novo mundo existem desde o velho, com a “imprensa da vaidade” substituída pela digital e as especulações sobre um “sistema de comunicação alternativo” esquecidas.


[i] A referência está no link, ao qual não tive acesso, já que a renovação da assinatura está em negociação. Tirei fotos das páginas com o celular. Communication in physics—the use of journals | Physics Today | AIP Publishing

[ii] Veja uma linha do tempo do correio eletrônico

[iii] Acesso aberto

[iv] https://quod.lib.umich.edu/j/jep/

[v] Vale a pena dar uma olhada nos dilemas da virada do século apontados em um artigo do ano 2000: Promises and challenges of electronic journals: academic libraries surveyed

13 mar 24

O fetiche da novidade na ciência, o andor e o santo

Peter Schulz: "Ciência é assim, mas as notícias não lembram que o andor dela precisa ir devagar, pois os santos a serem apreciados e, por que não, venerados, são de barro. Esse tipo de divulgação da ciência esquece o mais importante: a procissão da ciência é mineira"
A procissão dos flagelantes – Francisco de Goya, 1812

08 fev 24

Dois personagens da ciência: pesquisa, Holocausto e filosofia

Peter Schulz: "No que se refere ao jogo da avaliação, Kulczycki comenta que Weigl, um cientista brilhante, era perfeccionista e habilidoso na construção de seus instrumentos científicos. Sua postura frente à publicação de artigos teria sido radical. Achava que a pesquisa consistia em fazer ciência e buscar descobertas."
O biólogo e inventor de geopolítica complexa Rudolf Weigl; era perfeccionista e habilidoso na construção de seus instrumentos científicos

03 jan 24

Para gostar de ler artigos científicos

Peter Schulz: "É possível aprender sobre ciências (naturais) sem vasculhar os textos, ou seja, os artigos pelos quais esses cientistas se expressaram? Não só no ensino superior especializado, mas também no ensino médio?"
'Para Gostar de Ler' é o nome de uma coleção de pequenos livros com textos de grandes escritores, um enorme sucesso editorial da Ática

11 dez 23

Em busca do clima perdido

Peter Schulz: "Aos poucos eu fui reparando que, em algumas casas de amigos da família (alemãs também), aquele conjunto de instrumentos, chamados de estações meteorológicas pessoais, se destacavam nas paredes. Mais tarde eu vi que em algumas praças centrais de cidades da Alemanha havia a versão pública das estações pessoais"
A estação meterológica digital Weather Underground, com mais de 250 mil voluntários espalhados pelo mundo

08 nov 23

A heteronomia das universidades

Peter Schulz: A pertinência dos rankings é discutida há tempos, mas a sua contestação mais explícita é mais recente
Reprodução: “Ulisses e as sereias”, de John William Waterhouse (1891)
Ir para o topo