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Algoritmos e Fundamentos

José Mario Martínez: "Será que nossa progressiva deficiência algorítmica ao longo da vida representou uma vantagem evolutiva?"

Nos anos 50, crianças de nove anos aprendiam “a dividir”. Tratava-se de um procedimento bastante complicado. No começo, a criança deveria indicar o número de dígitos do dividendo que seria adequado para descobrir o primeiro dígito do resultado. Imediatamente, era necessário acertar esse primeiro dígito, o qual, ao ser multiplicado pelo divisor, deveria fornecer um produto que, após ser subtraído do número formado pelos dígitos selecionados no começo, deveria produzir um “resto” menor que o divisor. Para este processo, era imperioso saber a “tabuada” de cor. Realizado o primeiro passo, o resto antes obtido seria acrescido do seguinte dígito do dividendo, e o processo se repetia até esgotar seus dígitos. Dessa maneira, podia ser afirmado que o resultado era um número, e o resto era outro número necessariamente menor que o divisor. O processo se complicava se dividendo ou divisor não fossem números inteiros, ou no caso em que se desejasse um resultado com decimais depois da vírgula. Para estes casos, a criança era treinada com malabarismos específicos.

É provável que nenhuma criança entendesse o significado de dividir 37.432 por 0,0371. Entretanto, com maior ou menor destreza, todas aprendiam “a dividir”. Esta aprendizagem era posterior à de “multiplicar”, e ambas eram precedidas pelas habilidades de somar e subtrair. Antigos dogmas pedagógicos estabeleciam que, nos sete anos de ensino fundamental, as crianças deveriam dominar bem “as quatro operações”. O momento de aprender a calcular “a raiz quadrada” era esperado com ansiedade, nas aulas de matemática do ensino médio, por adolescentes ansiosos em descobrir o valor da hipotenusa conhecendo os catetos de um triângulo retângulo.

Em 2023, um pai dedicado se preocupava em explicar à sua filha de 10 anos a razão pela qual o número 2,8 é maior que 2,795. Nas aulas de matemática da escola de elite que a menina frequentava, este fato insólito era cuidadosamente explicado usando frações, diagramas e exemplos engenhosos. Esta situação preocupante acabou quando o pai decidiu apelar para “o algoritmo”. Em vez de fundamentar a razão mais ou menos profunda pela qual 2,8 é maior que 2,795, ele ensinou uma regra simples que permite reconhecer se um número com decimais é maior ou menor que outro. Naturalmente, a jovem interpelada entendeu a regra imediatamente e foi capaz de resolver em instantes o exercício que solicitava ordenar um conjunto de 7 números (com decimais) de menor a maior, sem cometer nenhum erro.

Nos anos 80, o fundamentalismo matemático estava no apogeu. Algumas escolas chegaram à conclusão de que os alunos fracassavam na compreensão dos fundamentos das operações devido a seus pais e mães desconhecerem tais fundamentos e negligenciarem o auxílio eventualmente solicitado por seus filhos e suas filhas. Para sanar esse problema, organizaram aulas para mães e pais, nas quais os adultos eram instruídos a resolver problemas simples, vinculados às quatro operações, usando argumentos “fracionários” rigorosos. O experimento serviu para constatar que mesmo adultos treinados em “ciências exatas” apelavam para os algoritmos tradicionais aprendidos na infância, fingindo de maneira constrangedora que acompanhavam o credo fundamentalista.

É bem sabido que, desde o nascimento, as crianças são alimentadas com doses maciças de dados e receitas (algoritmos). Sua capacidade para lidar com esse tipo de informação é enorme. Crianças aprendem a falar uma língua, a nadar e a dividir sem maiores dificuldades. Parece que essa capacidade tem sido útil, ao longo da evolução, para alicerçar a posição que nossa espécie assumiu na Natureza. As crianças dos anos 50 aprendiam a dividir com relativa facilidade, da mesma maneira que as atuais aprendem a manejar um celular com maior eficiência que seus avós. Se as aulas tradicionais eram caracterizadas pela ominosa “decoreba”, isto se deve, em grande parte, a que na primeira infância a “decoreba” é possível. Abandonar a capacidade de aprender algoritmos no ensino fundamental, em prol de dogmas do tipo “tudo deve ser fundamentado”, parece um desperdício destinado ao fracasso. Corre-se o risco de não aprender uma coisa nem a outra.

Com o tempo, deixamos de aprender algoritmos e armazenar dados e viramos fundamentalistas. Um respeitado biólogo de 60 anos que, nos anos 80, decidiu usar computadores, pretendia começar com a compreensão da física dos circuitos associados ao seu funcionamento básico. Um famoso analista numérico falecido idoso há quatro anos deixou um legado de programas de computador em uma versão da linguagem Fortran anterior a 1977, pois durante mais de 40 anos tinha se recusado a aprender novas técnicas de programação. (Para sermos justos, tais programas não são menos eficientes que os elaborados com técnicas modernas para resolver problemas similares.) Passamos a ser fundamentalistas porque, com o tempo, perdemos a capacidade de aprender algoritmos? Certamente, não teríamos chegado ao domínio atual da Natureza se não tivéssemos tido a capacidade de transcender os algoritmos e aproveitar a capacidade multiplicativa dos fundamentos. Será que nossa progressiva deficiência algorítmica ao longo da vida representou uma vantagem evolutiva?

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

25 abr 24

Empregos futuros

"Em princípio, o progresso tecnológico, ao eliminar a necessidade de trabalho humano para satisfazer as necessidades básicas, liberaria tempo para o descanso e permitiria que as pessoas se aposentassem mais jovens"
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21 mar 24

Zagueiros e pesquisadores

José Mario Martínez: "Fazemos nossas pesquisas e as terminamos com um bom chutão para frente. O último instante desse chute é enviar o paper para publicar. O que acontece depois?"
Esperamos que a bola caia nos pés de um jogador de nosso time, e que esse jogador seja suficientemente talentoso para dominá-la e produzir uma jogada que ocasione o gol dos nossos

17 jan 24

A liberdade de expressão e a definição dos números reais

José Mario Martínez: "Se se admite que há mentiras cujo enunciado deve ser proibido e punido e que há mentiras irrelevantes, é necessário definir qual é o nível de perigo de uma mentira para que esta seja tolerada ou não."
"A separação entre condutas proibidas e condutas permitidas fica mais séria quando se trata de problemas mais sérios"

05 jan 24

Os métodos científicos

José Mario Martínez: "... frequentemente, discursos científicos envolvem contradições que os operadores da ciência modulam cuidadosamente, ao ponto de se tornarem inofensivas."
"A ciência é prestigiosa porque, ao longo do tempo, tem provado ser bem-sucedida na sua tarefa de antecipar fatos corroboráveis."

20 dez 23

Se e somente se

José Mário Martinez: "As frases escritas na linguagem cotidiana precisam ser massageadas, repetidas de maneiras diferentes. As possíveis confusões devem ser previstas, até nos textos científicos e até nos matemáticos"
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13 dez 23

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José Mario Martinez: "O cubo esnubificado é um belo objeto. O autor deste texto conserva um exemplar de cartolina no seu gabinete, no qual tem encontrado farta motivação para concentração e deleite ao longo dos anos."
Quando o sólido original é o cubo, diremos que o sólido derivado desse procedimento é uma “esnubificação”

06 dez 23

Equilíbrio

José Mario Martinez: "O 'princípio básico do equilíbrio' estabelece que, em um ambiente no qual atores tomam decisões, resulta da decisão individual de cada ator, decisão essa tomada com o objetivo de otimizar uma função que podemos chamar de bem-estar individual"
Cena do filme Uma Mente Brilhante sobre a vida de John Nash, grande nome da teoria de jogos
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