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José Mario Martínez

Zagueiros e pesquisadores

José Mario Martínez: "Fazemos nossas pesquisas e as terminamos com um bom chutão para frente. O último instante desse chute é enviar o paper para publicar. O que acontece depois?"

“Vocês pensam que a pesquisa que fazemos não serve? Talvez não sirva para nosso país, mas serve para as grandes potências, para os Estados Unidos, para a Rússia!” Assim perorava um impetuoso físico, estridentemente nacionalista, 50 anos atrás, em país sul-americano hoje ameaçado de extinção. Os presentes não se surpreenderam com a estridência, mas sim com a menção “à Rússia”, porque a Rússia era, naquela época, União Soviética, e também com o uso do artigo. Ninguém falava sobre “a Rússia”. “A Rússia”, com artigo, evocava mais o império dos czares que a gigantesca líder do socialismo chamado real. O orador mostrava, assim, certo matiz grandioso e saudosista, o que não deixava de ser curioso naquele ambiente.

O químico Ricardo Alberto cochilava ao lado da bióloga Marta Sandra. Naquele país, todas as pessoas tinham dois nomes que competiam entre si. Marta Sandra, que estava grávida, aproveitava a assembleia para tricotar. Com sutil cotovelada, acordou o químico, que disse:

“Não estava dormindo.”
 “Como não, se estava começando a roncar?”
 “Posso repetir tudo que ele disse.”

No devaneio entre sono e vigília, Ricardo Alberto tivera uma visão. Viu a si (assim explicou para a bióloga) como beque de um dos times de futebol que atormentavam o esporte daqueles tempos. “E nós somos os zagueiros. Fazemos nossas pesquisas e as terminamos com um bom chutão para frente. O último instante desse chute é enviar o paper para publicar. O que acontece depois? Esperamos que a bola caia nos pés de um jogador de nosso time, e que esse jogador seja suficientemente talentoso para dominá-la e produzir uma jogada que ocasione o gol dos nossos.

Certamente, isso acontece muitas vezes. Entretanto, é comum a bola ir parar fora do campo, o que significa que nosso paper cai no esquecimento, que a bola termina nos pés do time contrário, que é esperto e a recebe de frente. Seria legal que a bola caísse sempre nos pés de alguém do nosso time que soubesse dominá-la e dar-lhe um bom destino. Sacou?” “Saquei”, disse Marta Sandra, “e você teme que o time contrário seja um país desenvolvido, ou uma grande empresa que visa apenas o lucro, e também teme que nosso paper tampouco seja contemplado dessa maneira, de modo que a probabilidade de que nossa pesquisa seja aplicada em favor do desenvolvimento de nosso país e do bem-estar de nosso povo seja relativamente baixa. Você não precisava cair no sono para chegar a essa conclusão. Já o ouvi dizer isso muitas vezes.”

“Sei. Mas gosto das metáforas futebolísticas. Aliás, todos os grandes estadistas gostam.” Fez-se um silêncio. Ricardo Alberto achava injusta e rude a expressão “não serve”, quando se aplicava a sua pesquisa e à de seus colegas. Pensava que, mesmo quando seus resultados não tinham utilidade direta, eles contribuíam para formar uma cultura na qual podiam germinar os talentos de muitos jovens que, a médio ou longo prazo, poderiam fazer a diferença. Tem que jogar o jogo para não cair no isolamento e, portanto, no obscurantismo e na ignorância.

Esperamos que a bola caia nos pés de um jogador de nosso time, e que esse jogador seja suficientemente talentoso para dominá-la e produzir uma jogada que ocasione o gol dos nossos

Também pensava que, sendo um pesquisador, suas aulas eram melhores, porque conhecia o que estava por trás de muitos conceitos que ensinava e que outros passavam aos alunos de maneira meramente superficial. Sorriu pensando que, afinal de contas, era um bom zagueiro. O futebol, sim, era um desastre. Tinha desistido de ir aos jogos de seu time favorito, porque o que neles se via era uma deprimente luta entre brutamontes de um lado e de outro. O reino dos “beques de fazenda”. Marta Sandra interrompeu seus pensamentos e, sem deixar de tricotar, disse:

“Mas isso tem solução. O que se precisa é um organismo permanente que esteja em contato tanto com a Universidade como com as instituições sob cuja alçada se encontram os problemas sociais e ambientais, por exemplo, as prefeituras, os sindicatos, as escolas, os movimentos sociais e as administrações da saúde. Não podemos fazer isso por nossa conta, porque não sabemos fazer. Acabamos dando bola fora.

O organismo do qual estou falando precisa estar presente em ambos os lugares, tanto na academia como nos ambientes onde surgem os problemas práticos, desafiadores e úteis para o desenvolvimento humano e a preservação do ambiente. Além disso, deve ser radicalmente não-burocrático, porque a burocracia estraga tudo. Sem burocracia e sem dinheiro envolvido.

“Nossa!”, disse Ricardo Alberto, “não sabia que você tinha pensado nisso.”
“Se você não tivesse dormido saberia que foi o que acaba de sugerir a socióloga Ágata Amália.” “Está bem. Mas isso não resolve o que mais me interessa, que é a crise do futebol.”

“Quanto a isso não se preocupe. Ouvi dizer que surgiu um cara na Catalunha que treina os times obrigando os defensores a tratar a bola com cuidado sem dar chutões pra frente. Um tal de Guardiola.”
“Não vai dar certo.”

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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